segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
sábado, 29 de janeiro de 2011
A moralidade das atividades perigosas
Por Rafael Vitola Brodbeck
Publicado em 29/11/2004
Questionam alguns fiéis acerca da licitude moral da prática de certas atividades que envolvam risco de vida. De fato, o V Mandamento do Decálogo, ao proibir o assassinato, estabelece também deveres de salvaguarda para com a própria vida. São esses, aliás, que fundamentam a legítima defesa, inclusive armada, contra a injusta agressão, ainda que cause a morte dos malfeitores (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2263-2267; Santo Tomás de Aquino. S. Th., II-II, q. 64, a. 7; Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Encíclica Evangelium Vitae, 56; ARRIGHI, A. Não matar, Pádua, 1946).
Enquadram-se no rol das ações perigosas determinadas práticas desportivas - luta, boxe, alpinismo, rapel, automobilismo -, algumas artes circenses - doma de feras, acrobacia, trapézio -, e mesmo atividades de lazer - caminhada no mato, acampamento em local ermo, banho de mar um pouco afastado da praia ou sob "bandeira vermelho").
A pergunta pode ser assim reproduzia: é imoral lutar boxe, praticar rapel, domar leões, fazer acrobacias, escalar montanhas? Ou: peca-se contra o V Mandamento desenvolvendo-se tais atividades perigosas?
Para bem responder a instigante questão, devemos preliminarmente expor algumas noções fundamentais implicadas com a ordem divina de não matar (cf. Êx 20,13).
O mandamento implica em dois tipos de cuidados, uns para com a vida do próximo, outros para com a própria vida. Este segundo grupo é o que nos interessa.
Dentre os cuidados com a vida, tanto a nossa - objeto do presente estudo - quanto a do próximo, há uma série de deveres elencados pelos moralistas: a) positivos: usar dos meios aptos para a preservação da vida; b) negativos: evitar os meios que ordinariamente causem a morte própria ou de outrem (cf. BAYET, A. O suicida e a moral, Paris, 1922; ODDONE, A. O respeito à vida, in "Civiltà Cattolica", nº 97, III, 1947, pp. 289-299; DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. Teologia Moral, São Paulo: Paulinas, 1959, pp. 228-244).
De início podemos afirmar que o ninguém é autorizado a atentar contra a próproa vida, donde a proibição do suicídio direto. Já em relação ao suicídio indireto, este é, em geral, proibido, mas pode ser permitido ocorrendo razão grave. "Mata indiretamente a si mesmo quem, conscientemente, pratica uma ação que visa a um efeito bom, compreendido o desejado, capaz, porém de também causar a morte. Neste caso, o efeito bom compensa o mau. É lícito atirar-se da janela paa fugir a um incêndio; para fugir do violador do próprio pudor; para evitar o cárcere, etc. É lícito, na guerra, fazer saltar um depósito de pólvora, uma fortaleza, uma nave etc, mesmo com perigo certo da própria vida. É lícito, por caridade ou por profissão, servir os pestilentos, os leprosos ou outros doentes infecciosos." (DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. op. cit., p. 229)
Também é proibido a abreviação da própria vida por vários anos, salvo "por uma necessidade moral ou pelo exercício da virtude." (DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. op. cit., p. 229) - exemplo de necessidade moral: ganho honesto que faça um ferreiro estar em contato contínuo com o fogo ou um químico com produtos tóxicos; exemplo de exercício da virtude: mortificação do próprio corpo com jejuns, penitências, disciplinas. Claro que a necessidade moral será aferida caso a caso, e a virtude deve ser exercitada com o auxílio de um diretor espiritual, para não ocorrer excessos - que podem, aliás, ser pecado de soberba, orgulho espiritual: "vejam como sou santo, como jejuo, como etc." Se não existe perigo próximo de morte, também o consumir bebidas alcoólicas e o fumar tabaco não constituem pecado, a não ser que o uso seja excessivo, quando será pecado venial (cf. GENICOT-SALSMANS, Pe. J., SJ. Institutiones Theologiae Moralis, vol. I, Bruxelas, 1951, p. 363) - havendo perigo próximo de morte, o pecado é mortal; o uso de drogas para fins recreativos, i.e., não necessários, pode ser pecado grave ou venial, havendo, no primeiro caso, perigo próximo de morte, e, no segundo, excesso sem o tal perigo próximo. Como o consumo social de álcool ou tabaco, ordinariamente, constituem, no máximo, perigo remoto de morte, não há pecado - evidentemente, se houve excesso, há pecado, e, com o perigo próximo, este é agravado (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2990). Consumir maconha ou cocaína, por outro lado, é pecado quando feito fora de uso terapêutico ou necessário, por constituir-se perigo próximo e não remoto de morte (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2991).
A mutilação é pecado grave, "desde que não se pratique com a finalidade de conservar a vida." (DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. op. cit., p. 230)
O desejo de morrer, outrossim, é lícito, desde que haja causa justa, v.g., o gôzo de Deus, a contemplação da bem-aventurança eterna, ser libertado de uma enfermidade longa e sofrida, e quem o desejo submeta-se à vontade divina.
Também, pelo V Mandamento do Decálogo, deve o homem conservar a "própria vida e a saúde, usando de todos os meios ordinários." (DEL GRECO, Fr. Teodoro da Torre, OFMCap. op. cit., p. 231) Daí a proibição da eutanásia passiva (a eutanásia ativa é proibida pelos deveres para com a vida alheia), mas não da ortotanásia: "A interrupção de procedimentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionais aos resultados esperados pode ser legítima. É a rejeição da 'obstinação terapêutica'. Não se quer dessa maneira provocar a morte; aceita-se não poder impedi-la." (Catecismo da Igreja Católica, 2278)
Enfim, e aqui o objeto próprio de nosso articulado, proíbe-se a exposição temerária ao perigo de morte. Analisemos alguns conceitos.
Exposição temerária é colocar-se frente ao perigo sem a tomada das devidas cautelas. Desse modo, sabendo-se que uma determinada atividade representa um perigo à própria vida - não uma certeza, pelo que seria imoral, mas um perigo, o que motiva nosso debate -, é necessária a adoção de medidas assecuratórias normais. Não se requer o uso de medidas extraordinárias, bastando a adesão à regulamentação da atividade, o conhecimento prévio do perigo, a habilidade e a destreza (exigidas nas ações mais perigosas, e que tornem o risco remotíssimo quando se tem fim de lucro), e a utilização de adequado equipamento.
Expor-se ao perigo de morte, usando das cautelas acima referidas, não é pecado se o fim é bom. Assim, quem faz rapel movido pelo desejo de uma justa diversão ou para admirar a criação de Deus e estar em contato mais íntimo com a natureza; quem pratica acrobacias no circo para emocionar a platéia com a bekeza de sua arte, e desde que o lucro não seja o fim exclusivo; etc, não pratica pecado, usando das medidas normais de segurança. O risco assumido não é imoral, nesses casos, havendo quem o assume pelo exercício da atividade perigosa tomado "todas as providências tendentes a evitar ou minimizar as possibilidades de dano (...)." (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. 1, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 164)
Objetarão alguns que os fins não justificam os meios. A expressão, todavia, deve ser melhor formulada: os fins não justificam os meios maus. Porém, quando os meios são neutros, i.e., nem bons nem maus em si mesmos, os fins bons estão plenamente justificados.
Ora, os fins de contemplar a natureza, divertir-se moderadamente, descansar etc são bons, e assumir um risco de morte é um meio neutro. Pode-se, logo, desenvolver atividades perigosas à própria vida, presente o fim bom e ausente algo que transforme o meio, em si neutro, em coisa má (por exemplo, não usar equipamento adequado).
Tomando as devidas cautelas (o que mantém o meio neutro, sem torná-lo mau) e com um fim bom, a prática de atividades que envolvam perigo para a própria vida é moralmente lícita, não constituindo pecado contra o V Mandamento.
Este artigo foi publicado durante a primeira fase do Apostolado Veritatis Splendor. Conheça o site novo aqui
Touradas, provas campeiras, rodeio… Moralidade e reflexões sobre seus valores e virtudes
Esse modo de lidar com os animais não é, de per si, cruel. Pode haver um ou outro que o sejam, ou mesmo a maioria, mas não a crueldade não é ontológica. Só nos chocamos, por vezes, porque estamos acostumados com o politicamente correto, o pensamento dominante que iguala homens e bichos, e às vezes nem nos damos por conta.
Aqui no RS, as provas campeiras imitam a lida de campo, a faina. E esta imita a guerra. O gaúcho é belicoso, militaresco por natureza, dado que nasceu peleando pela consolidação da fronteira. Nas provas, essa belicosidade é simbolizada. E muitos valores existem nelas: o companheirismo entre a peonada, a hierarquia (patrão, capataz, peão), a paternidade dos superiores, a humildade, a diferença entre homens e animais, o reconhecimento dos perigos da vida, o culto às tradições, a coragem (essa virtude tão esquecida em nossos tempos de amor à covardia), a disciplina, a laboriosidade, a vida em família, a técnica, a sabedoria transmitida de geração em geração (como encilhar um cavalo, como domar um potro, como laçar, e a profundida filosófica desses atos cotidianos), tudo isso é carregado de um simbolismo muito profundo que nos remete à Civilização Cristã. A prova campeira, no RS, é uma herança espanhola, um vínculo profundíssimo com a Idade Média.
Buscar a crueldade com os animais por si só é errado, mas aceitá-la, apenas, como parte de algo maior, como consequência, não é errado, nem imoral. Podem alguns não gostarem, mas não é certo envolver a moral católica nisso. É como a história do cigarro: não gosta, ok, mas não me venham dizer que é pecado, porque não é.
A caça à raposa é uma tradição igualmente cheia de significados: o esmero, o cavalheirismo, a cortesia, a delicadeza nos detalhes, a preparação, a disciplina, a distinção entre homem e animal, e, aparentemente paradoxal, a confiança entre homem e animal (seu cachorro), a técnica tradicional, tudo isso é uma gama de valores humanos que formam o ethos cultural que não se pode desprezar. Fazê-lo seria aderir ao positivismo comteano.
De outra sorte, não acho que se deva dissociar fé e rodeio. A simples presença de Nossa Senhora em tais eventos é um sinal da religiosidade, ainda que cultural, no meio do povo simples. Não devemos dissociar, e sim aproveitar o momento para colocarmos em ação técnicas de apostolado que sejam mais eficazes. Os ginetes (no RS, peão é outra coisa) fazem tanta questão da imagem da Aparecida: prova de que, pelo menos culturalmente, o sagrado ainda se faz presente, e, mais ainda, nítido símbolo de que as tais provas são plenamente compatíveis com a Civilização Cristã.
“De las corridas de Toros
P. ¿Las corridas de Toros como se usan en España son prohibidas por derecho natural? R. Que no lo son; porque según en nuestra España se acostumbran, rara vez acontece morir alguno, por las precauciones que se toman para evitar este daño, y si alguna vez sucede es per accidens. No obstante el que careciendo de la destreza española y sin la agilidad, e instrucción de los que se ejercitan en este arte, se arrojare con demasiada audacia a torear, pecará gravemente, por el peligro de muerte a que se expone.
P. ¿Están prohibidas las corridas de Toros por derecho eclesiástico? R. Que aunque Pío V prohibió las corridas de Toros con penas gravísimas, las permitieron después para los seglares Gregorio XIII, y Clemente VIII, quitando las penas impuestas por aquel Sumo Pontífice, pero mandando fuesen con estas dos condiciones; es a saber, que no se tuviesen en día festivo, y que se [432] tomasen por aquellos a quienes incumbe, todas las precauciones necesarias, para que no sucediese alguna muerte. Por lo que con estas dos condiciones son en España lícitas para los seglares las corridas de Toros. A los Clérigos, aunque se les prohiba el torear, no se les prohibe la asistencia a las corridas. Con todo les amonesta su Santidad se abstengan de tales espectáculos, teniendo presente su dignidad y oficio para no ejecutar cosa indigna de aquella, y de éste.
P. ¿Pecan gravemente los regulares que asisten a la corrida de Toros? R. Que sí; porque obran en materia grave contra el precepto impuesto por Pío V. Los Caballeros de los Ordenes Militares no son comprehendidos en este precepto por no ser verdaderos religiosos, y así quedan excluidos por Clemente VIII. La excomunión impuesta contra los regulares que asisten a dichas corridas, según la opinión más probable, sólo es ferenda.
P. ¿Está prohibida a los regulares la asistencia a las corridas de novillos? R. Que no; porque sólo se les prohibe la asistencia a las de Toros, y por este nombre no se entienden los novillos; y también porque en la corrida de éstos el peligro de muerte es muy remoto. Mas no pecarán los regulares si vieren torear desde las ventanas de sus casas; o de otra parte pasando por ella casualmente; pues esto no es asistir a la corrida. Pecarán, por el contrario, si asisten desde alguna ventana del circo aunque sea entre celosías, y no haya peligro de muerte; porque siendo la prohibición absoluta, debe absolutamente observarse.
P. ¿Son lícitas fuera de España las corridas de Toros? R. Que no; lo uno porque la moderación hecha por Gregorio XIII, y Clemente VIII, sólo habla con los seculares y clérigos existentes en España. Lo otro, porque los de otras naciones, o ya sea por no tener la agilidad de los Españoles, o por no ser tan diestros en este ejercicio están expuestos al peligro a que no están estos. Como quiera que sea, la prohibición de Pío V debe regir fuera de España.”
(Marcos de Santa Teresa. Compendio Moral Salmaticense, según la mente del Angélico Doctor; Pamplona: Imprenta de José de Rada, 1805, Tratado diez y seis. Del quinto precepto del Decálogo, Capítulo único. Del homicidio. Punto once)
Vê-se que:
1. As touradas não são proibidas por direito natural. Logo, não são pecado, por si.
2. A única proibição às touradas é de direito eclesiástico, e para os clérigos. A razão dessa proibição está no tipo popularesco de espetáculo e no ambiente pouco propício a sacerdotes.
3. A análise da moralidade das touradas NÃO se dá pela “crueldade” aos animais, e sim pela potencialidade de risco ao ser humano (é com o toureiro, não com o touro, que se importa a moral). Mesmo que proibida fosse, então, a razão não seria pela pretensa crueldade.
4. O comentário acima vale para outras provas semelhantes.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Santa Joana D'Arc
Autor: D. Estevão Bettencourt
Fonte: Site Cleofas
Santa Joana D’Arc
D. Estevão Bettencourt
A figura de Joana d.arc
Os precedentes
O cenário histórico em que aparece Joana d’Arc, é o da guerra dita “dos Cem Anos” (1337´1453) entre a França e a lnglaterra. Em 1415 Henrique V da lnglaterra invadiu a França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país.
Em 1422, morreram Henrique V e Carlos VI. o filho deste, Carlos VII fez´se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam em território francês e assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo. Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
lntervenção de Joana
Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever, mas possuia profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de Alexandria e S. Margarida de Antioquia, virgem e mártir; exortavam´na a ir socorrer a França.
A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? ´ Note´se que a alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora em toda a conduta de Joana d’Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se manifestaram. Torna´se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das “alucinações”.
Somente três anos mais tarde, em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou´a então à presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo´a, o oficial desprezou´a, devolvendo´a a seu pai; este ameaçou afogá´la. Joana voltou a procurar o capitão, impressionando´o por sua energia. Roberto mandou´a ter com o rei Carlos VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que deviam defendê´la na caminhada por estradas perigosas.
A donzela pediu e obteve também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que ela empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei dissimulado entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleães.
Todavia aquela jovem de 17 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança. Tendo insistido, Joana foi submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana. A situação para a França era tão grave que somente uma intervenção do céu poderia salvar a nação.
O rei concedeu´lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleães, dando entrada na cidade a Joana d’Arc e sua tropa. Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia ´ o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína Ihe disse então: “Gentil roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus”.
Joana dava por finda a sua missão, quando o rei Ihe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil, muito se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiégne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos´ouro, e a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. ´ Este plano haveria de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais persuasivos.
Mentalidade do século XV
Não se poderiam entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidos contra Joana d’Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses da época:
a) Joana dera à sua missão militar um caráter religioso, dizendo que Deus queria por seu intermédio libertar a França. ´ Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá´la, tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de Deus, por estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. ´ Caso isto ficasse comprovado, também o rei Carlos VII perderia a sua autoridade; seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.
b) A mentalidade popular da época era levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava´se, só teria sido alcançada com a colaboração do céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c) A própria conduta de Joana se prestava a deturpações... As calamidades que assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de la Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? ´ Além disto, o espírito medieval podia facilmente escandalizar´se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos. Compreende´se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito.
d) Será preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de Paris, setor de grande autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a considerar´se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, Ihe eram energicamente contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava´se guiar por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queira passar por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
À luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora.
O desfecho da história de Joana
Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira, encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado à causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.
Não foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice´inquisidor de Ruão, Jean Lemaitre. Cauchon convidou ainda grande número de assessores e jurados, aos quais o governo inglês fez saber que tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à Universidade de Paris.
O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da constituição de tal tribunal. Contudo o processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar´lhe a confissão de heresia e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para o Santo Padre: “Peço que me leveis à presença do Senhor nosso, o Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder Tudo que eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o meu apelo!” Em vão, porém, apelou.
Finalmente, após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon: “Eu morro por causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja.... isto não teria acontecido.” A opinião pública viu´se profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos.
Conseqüentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo condenatório, revisão que terminou favorável a jovem. Seguiu´se em 1445 o inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da Inquisição: após numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do “processo do processo”, reabilitando a memória da donzela.
De modo oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d’Arc, reconhecendo´lhe os méritos e a santidade em 1920. Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação? Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da Idade Média: na época da Renascença o adjetivo “gótico” vinha a ser sinônimo de “bárbaro”; quebravam´se os vitrais das catedrais para substitui´los por vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (†1585), imitador dos clássicos gregos e latinos, qualificava o período medieval de “séculos grosseiros”; mais tarde, Voltaire (.†1778) e ainda Anatole France († 1924) mostravam´se diretamente infensos à jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d’Arc.
Em conclusão: a condenação de Joana d’Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais, porém, poderá ser considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina. Trata´se de um processo inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade suprema da Igreja, mas, sim, por autoridade a eles conferida pelo rei da Inglaterra. Entende´se, pois, que a S. lgreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e canonização de Joana d’Arc.